Muriel olhava fixamente o fundo do copo ao lado a garrafa de vinho já a um quarto para acabar, pensou em descer até a mercearia, pela janela viu que uma chuva fina deixava seu dia mais melancólico. Ouviu passos no corredor, endireitou-se na poltrona e esperou que a maçaneta da porta girasse, foi tomada por certa ansiedade e instintivamente escondeu a garrafa de vinho mas os passos passaram diretos e ela pode ouvir a porta do apartamento vizinho se abrindo. Reclinou-se novamente com certo alívio e serviu-se da ultima taça, ao menos teria tempo de livrar-se dos indícios de que havia bebido, queria evitar o olhar de desaprovação de Alan com sua expressão de eterno equilíbrio a perguntar-lhe se estava bêbada, lembrava-se de como ele a fazia sentir-se anormal balançando levemente a cabeça de um lado pro outro. Fechou os olhos e recordou-se de uma cena de sua infância quando sua avó batera-lhe na boca por ela ter dito um palavrão e pelas freqüentes advertências: “... Deus não gosta de meninas de boca suja, ou... Deus não gosta de meninas malcriadas!”. Definitivamente, Deus não gostava dela e a recíproca era verdadeira. Adormeceu, mas antes lavou o copo e livrou-se da garrafa.
Acordou lá pelas tantas após ter sonhado que cachorrinhos de duas cabeças carregavam seus chinelos, assustou-se ao ouvir vozes, novamente seus vizinhos estavam discutindo, a velha dos gatos e o contador exibicionista. Ela por volta dos oitenta, só tinha por companhia meia dúzia de gatos gordos e preguiçosos que passavam o dia a tomar sol, chamava-se Madalena. Dona Nena como era mais conhecida tinha uma estória tragicômica que não fazia questão de esconder, muito pelo contrario, contava cada vez que arrumava uma vítima para seu desabafo. Era viúva de um diplomata, não teve filhos pois temia perder a liberdade que a possibilitava viajar o mundo todo, entre outras passagens contava orgulhosa ter participado de uma recepção na Casa Rosada numa de suas viagens a Buenos Aires. Vivia num delírio de ostentação ate o dia em que recebeu a notícia de que seu marido havia dado entrada no PS do hospital de uma cidade litorânea com o pênis colado na mão de sua amante e um tiro no peito. Tinham sido flagrados no leito conjugal pelo marido, este por sua vez trabalhava em um estaleiro e usou todo seu conhecimento em colar cascos de navios para perpetuar o momento. Ele morreu por conta do tiro, ela escapou e acabou ficando com metade dos bens do falecido alem da pele de seus órgãos genitais na mão, descobriu-se depois que tinham um filho em comum. Dona Nena herdou a outra metade, mas acabou estourando tudo em casas de bingo e analistas e agora sobrevivia com o dinheiro da aposentadoria.
Ele passado dos cinqüenta era contador em uma repartição pública, morava com uma garota mirrada e cheia de piercings que tinha metade de sua idade, tinha o hábito de desfilar pelo corredor vestido somente com um roupão encardido levemente aberto, sorrindo com seus dentes tortos e amarelos. Não tinha uma vida muito interessante limitava-se a trabalhar, beber e discutir com sua vizinha. Ele reclamava do mau cheiro que os gatos causavam e ela pela conduta nada apropriada dele e de sua namorada que, sejam amando-se ou degladiando-se sempre o faziam aos berros.
Muriel olhou no relógio e ficou desolada pois dormira a tarde toda, a chuva havia cessado e fazia uma noite fria, olhou a desordem do apartamento mas não se importou com isso, resolveu descer e comprar outra garrafa de vinho e um pacote de sopa instantânea , pois Alan estaria com fome quando retornasse, pegou o casaco e saiu.
Cruzou com o contador com o seu roupão encardido e seu sorriso amarelo, quase pisou em um dos gatos, o elevador cheirava a mofo misturado a tabaco rangia e balançava como um ônibus de subúrbio e ela sentiu-se aliviada quando saiu do prédio e pode respirar ar puro.
Já passava das onze, Muriel atravessou a praça a passos lentos o vazio lhe arrancara a pressa, os trejeitos já não eram mais frenéticos como outrora e os cartazes do cinema não lhe chamavam mais a atenção, nem a discussão dos travestis, o comercio estava quase todo fechado com exceção da farmácia e do armazém, serviços de primeira necessidade ! No primeiro muito iluminado, podia-se ver um casal com bebê rosado ao colo, o segundo na penumbra, de lá ouvia-se as ébrias conversas, ela entrou e não deu atenção aos olhares torpes pagou o vinho e saiu indiferente aos comentários sobre suas ancas, voltou para o prédio o elevador rangeu e balançou, ela lembrou do ônibus e viu que esquecera a sopa instantânea....
...dez para meia-noite, ela serviu-se de uma taça de vinho e um antidepressivo, este devidamente recomendado pelo seu médico. Não estavam funcionando! ... nem o médico e nem o antidepressivo, mas ao menos o segundo combinado ao vinho dava-lhe uma agradável sensação, acomodou-se na poltrona de frente para porta e tentou escrever mas nada lhe vinha a cabeça, pegou um livro mas não conseguia concentrar-se na leitura, pensou que talvez deve-se voltar a mercearia e comprar a sopa, foi conferir o quanto restara-lhe de dinheiro e viu que gastara suas últimas notas no vinho.
...três e meia, resolveu ouvir Piazzolla, rodopiou pela sala derrubando os objetos na estante e quebrou um anjo de biscuit, alguém bateu na porta e ela apressou-se a esconder o vinho se recompôs e correu a abrir, era a garota dos piercings, estava usando um robe transparente e segurando uma fita de vídeo com uma dominatrix na capa, sorriu e a convidou para um “ménage a troa”, Muriel agradeceu mas disse que não achava seu namorado atraente, fechou a porta aninhou-se na a poltrona e caiu num choro compulsivo...
...chorou por Alan, pela velha dos gatos, pela sua avó e seu Deus intolerante que não gostava de garotinhas más, pelo contador e sua namorada, pelos bêbados do armazém e pelos bebes rosados das farmácias, pelo tango triste de Piazzolla e depois de ter molhado o suéter e congestionado o nariz a ponto de não mais poder respirar viu que já passavam das cinco da manhã, foi ate a janela a luz do sol começava a pintar o céu, ela conclui que o dia seria bonito, e então se atirou do quinto andar ...
...passou pelo quarto, a senhora que assistia a TV não a viu.
...passou pelo terceiro, uma criança dormia serenamente em seu berço.
...passou pelo segundo, um cão latiu e correu para a janela.
...derrubou um vaso de violetas ao passar pelo primeiro.
Estatelou-se na calçada com um barulho abafado no momento em que Alan dobrava a esquina, ele correu aturdido e deixou cair os pães e os livros que carregava, balançou a cabeça de um lado para outro, mas já não estava tão equilibrado!
Acordou lá pelas tantas após ter sonhado que cachorrinhos de duas cabeças carregavam seus chinelos, assustou-se ao ouvir vozes, novamente seus vizinhos estavam discutindo, a velha dos gatos e o contador exibicionista. Ela por volta dos oitenta, só tinha por companhia meia dúzia de gatos gordos e preguiçosos que passavam o dia a tomar sol, chamava-se Madalena. Dona Nena como era mais conhecida tinha uma estória tragicômica que não fazia questão de esconder, muito pelo contrario, contava cada vez que arrumava uma vítima para seu desabafo. Era viúva de um diplomata, não teve filhos pois temia perder a liberdade que a possibilitava viajar o mundo todo, entre outras passagens contava orgulhosa ter participado de uma recepção na Casa Rosada numa de suas viagens a Buenos Aires. Vivia num delírio de ostentação ate o dia em que recebeu a notícia de que seu marido havia dado entrada no PS do hospital de uma cidade litorânea com o pênis colado na mão de sua amante e um tiro no peito. Tinham sido flagrados no leito conjugal pelo marido, este por sua vez trabalhava em um estaleiro e usou todo seu conhecimento em colar cascos de navios para perpetuar o momento. Ele morreu por conta do tiro, ela escapou e acabou ficando com metade dos bens do falecido alem da pele de seus órgãos genitais na mão, descobriu-se depois que tinham um filho em comum. Dona Nena herdou a outra metade, mas acabou estourando tudo em casas de bingo e analistas e agora sobrevivia com o dinheiro da aposentadoria.
Ele passado dos cinqüenta era contador em uma repartição pública, morava com uma garota mirrada e cheia de piercings que tinha metade de sua idade, tinha o hábito de desfilar pelo corredor vestido somente com um roupão encardido levemente aberto, sorrindo com seus dentes tortos e amarelos. Não tinha uma vida muito interessante limitava-se a trabalhar, beber e discutir com sua vizinha. Ele reclamava do mau cheiro que os gatos causavam e ela pela conduta nada apropriada dele e de sua namorada que, sejam amando-se ou degladiando-se sempre o faziam aos berros.
Muriel olhou no relógio e ficou desolada pois dormira a tarde toda, a chuva havia cessado e fazia uma noite fria, olhou a desordem do apartamento mas não se importou com isso, resolveu descer e comprar outra garrafa de vinho e um pacote de sopa instantânea , pois Alan estaria com fome quando retornasse, pegou o casaco e saiu.
Cruzou com o contador com o seu roupão encardido e seu sorriso amarelo, quase pisou em um dos gatos, o elevador cheirava a mofo misturado a tabaco rangia e balançava como um ônibus de subúrbio e ela sentiu-se aliviada quando saiu do prédio e pode respirar ar puro.
Já passava das onze, Muriel atravessou a praça a passos lentos o vazio lhe arrancara a pressa, os trejeitos já não eram mais frenéticos como outrora e os cartazes do cinema não lhe chamavam mais a atenção, nem a discussão dos travestis, o comercio estava quase todo fechado com exceção da farmácia e do armazém, serviços de primeira necessidade ! No primeiro muito iluminado, podia-se ver um casal com bebê rosado ao colo, o segundo na penumbra, de lá ouvia-se as ébrias conversas, ela entrou e não deu atenção aos olhares torpes pagou o vinho e saiu indiferente aos comentários sobre suas ancas, voltou para o prédio o elevador rangeu e balançou, ela lembrou do ônibus e viu que esquecera a sopa instantânea....
...dez para meia-noite, ela serviu-se de uma taça de vinho e um antidepressivo, este devidamente recomendado pelo seu médico. Não estavam funcionando! ... nem o médico e nem o antidepressivo, mas ao menos o segundo combinado ao vinho dava-lhe uma agradável sensação, acomodou-se na poltrona de frente para porta e tentou escrever mas nada lhe vinha a cabeça, pegou um livro mas não conseguia concentrar-se na leitura, pensou que talvez deve-se voltar a mercearia e comprar a sopa, foi conferir o quanto restara-lhe de dinheiro e viu que gastara suas últimas notas no vinho.
...três e meia, resolveu ouvir Piazzolla, rodopiou pela sala derrubando os objetos na estante e quebrou um anjo de biscuit, alguém bateu na porta e ela apressou-se a esconder o vinho se recompôs e correu a abrir, era a garota dos piercings, estava usando um robe transparente e segurando uma fita de vídeo com uma dominatrix na capa, sorriu e a convidou para um “ménage a troa”, Muriel agradeceu mas disse que não achava seu namorado atraente, fechou a porta aninhou-se na a poltrona e caiu num choro compulsivo...
...chorou por Alan, pela velha dos gatos, pela sua avó e seu Deus intolerante que não gostava de garotinhas más, pelo contador e sua namorada, pelos bêbados do armazém e pelos bebes rosados das farmácias, pelo tango triste de Piazzolla e depois de ter molhado o suéter e congestionado o nariz a ponto de não mais poder respirar viu que já passavam das cinco da manhã, foi ate a janela a luz do sol começava a pintar o céu, ela conclui que o dia seria bonito, e então se atirou do quinto andar ...
...passou pelo quarto, a senhora que assistia a TV não a viu.
...passou pelo terceiro, uma criança dormia serenamente em seu berço.
...passou pelo segundo, um cão latiu e correu para a janela.
...derrubou um vaso de violetas ao passar pelo primeiro.
Estatelou-se na calçada com um barulho abafado no momento em que Alan dobrava a esquina, ele correu aturdido e deixou cair os pães e os livros que carregava, balançou a cabeça de um lado para outro, mas já não estava tão equilibrado!
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